terça-feira, 23 de setembro de 2014

Fogo

"As chamas vão consumindo tudo que há na frente". Foi a frase que ele ouviu no jornal. O fogo. O elemento incontrolável e destruidor. Fonte de calor e de proteção, mas ao mesmo tempo de morte e destruição. Tudo consome.
Na reportagem ele viu as labaredas serpenteado num balanço gracioso e terrível. "(...) consumindo tudo que há na frente." A frase continuava ecoando. Dentro dele. E começou a consumi-lo também.
O elemento mortífero e vital saiu da televisão e começou a lhe queimar. Queimou suas vestes. Queimou sou pele. Seus músculos. Sistemas. Órgãos. Ossos. Queimou tudo. E continuou queimando.

Seus sentimentos entraram em combustão. Sua alma se tornou cinzas. Suas lágrimas evaporaram.
Eis o poder do fogo. Consumir tudo, queimar o que houver para ser queimado e continuar sendo fogo. Até não ser mais.

sábado, 20 de setembro de 2014

Paixão

Da primeira vez que experimentei foi bom. Uma miríade de sensações que me eram até então, desconhecidas e que passei a desejar novamente, invadiu-me. Na segunda vez o efeito não diminuiu, mas depois de uma terceira, quarta, quinta e do efeito passageiro, a gente começa a perder a graça. Porém, bem lá no fundo, fica aquela expectativa de atingir o ápice do prazer ao experimentar uma vez mais.

"Uma vez em que tudo pode ser diferente. Uma vez em que todos os efeitos passageiros sejam compensados pela duração."
Frio na barriga, mãos tremendo, pernas bambas, escola de samba no peito. Pensamentos com um único alvo humano o dia inteiro: você. O sono vai embora porque o medo de sonhar contigo e não te ter ao acordar é grande demais. O corpo e a alma desesperados para entrar em contato com sua pele, seu cheiro, sua boca, suas emoções, suas palavras...

Coisa cruel é o vício. Ter desejo por algo que se sabe não trazer benefício.
Coisa cruel é a paixão que sempre traz gotas de felicidade e oceanos de desilusão.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Aprender a Perder

Sempre gostei de ganhar. Ganhar nas partidas de futebol. Ganhar jogando vídeo game. Ganhar guloseimas, roupas, brinquedos, presentes, gestos de carinho. Ganhar afeto.
Ganhar é cômodo. É prazeroso. É "bom".

Perder, pelo contrário, sempre se revela uma tarefa difícil. Penosa. Dolorosa, até. Mas também acontece.
Talvez ainda mais que o ganhar.

Conforme vai-se avançando na estrada do existir e este vai se descortinando, começa-se a aprender a sutil arte de perder, a lidar com a derrota, com o fracasso, a decepção.
Como diz um certo autor que gosto muito: "o mundo não é uma fábrica de realização de desejos." Desde cedo nos deparamos com a perda. E fui descobrindo que, apesar de doloroso, perder é bom. Perder abre espaço. Espaço para que algo novo seja ganho. Talvez soe como frieza (e talvez para aprender a perder tenhamos que começar a perder calor), mas as coisas que perdemos, por mais importantes que sejam, perdem um pouco do valor com o passar do tempo.
Com o tempo se descobre que aquilo que era imprescindível, na verdade, era prescindível. Que apesar das perdas, continuamos a viver. 
Aprender a perder... Eis uma tarefa para toda uma vida. Vida essa que um dia também iremos perder.
Perder e ganhar andam de mãos dadas. Uma dialética bem expressa em: "se alguém quiser salvar sua vida perdê-la-á", pois a vida é o que acontece enquanto tentamos ganhá-la.
Perder é necessário. Perder é preciso.
Perder o rumo pode nos levar a lugares novos. Perder as certezas pode nos levar à descobertas.
Perder tempo pode ensinar a valorizar o tempo.

É preciso olhar a vida sempre com os dois olhos e não somente com um. 

Como diz a máxima nietzschiana: "Da escola de guerra da vida - o que não me mata, fortalece-me."

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O Som do Silêncio

Ele se sentou lenta e pesadamente. Sucumbiu ante o peso de seu corpo naquela débil cadeira de madeira que possuía um aspecto velho e gasto, como se fosse partir-se ao menor contato, mas que resistiu bem. Às vezes as coisas de aparência frágil resistem a grandes pesos.
Ali sentado ele ouviu. O som do silêncio. O som de todas as palavras não ditas e mal-ditas reverberando dentro dele. Ele ouviu silêncio onde outrora houvera música. E ele soube. Soube que o silêncio fala. Timidamente. Em sussurros. Às vezes aos berros. Através de mímicas. Através de olhares. O silêncio é sempre um dizer. Um dizer mais profundo que apenas quem aprendeu que há mais a dizer do que as palavras podem expressar sabe ouvir.
Ele ouviu também o vazio. Onde aquilo que deveria ser dito e não foi começou a fazer falta. Onde deveria haver dizer e nunca houve. Talvez porque não houvesse nada além de vazio. Se é verdade que nada havia a ser dito, jamais haveria silêncio, pois o silêncio só existe onde é preciso falar. O vazio, por sua vez, está onde nunca houve nada.
Permaneceu em meio ao ressonante silêncio e ao esmagador vazio. Esperando. Somente esperando.
Paciência. O silêncio fala. O silêncio fala o que a boca cala.
O vazio, embora mudo, também anuncia uma mensagem: nada. Nada houve a ser dito. Nada houve a ser calado. 
Nada. Onde ele queria que houvesse algo.
Realmente o mundo não é um pai amoroso que traz presentes. É um mestre cruel que ensina pelo abandono. Seu ensino é lento, doloroso, profundo. As pernas vacilam, mas com o tempo aprendem a suportar. O corpo em declínio um dia aprende a levantar. A lágrima a cair, talvez aprenda a voar. Ou não.
Talvez nada fosse tão importante afinal. Talvez no lugar do silêncio, tudo fosse vazio.
Vazio de cor. Vazio de sons. Vazio de formas. Vazio de sentimentos.
Somente uma possibilidade vazia.
Vazio de certezas e de dúvidas. Vazio de tudo. Puro vácuo. Puro buraco sem fundo em plena queda.
Bem ali. Naquela velha cadeira.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Cegueira

Seus olhos que durante tanto tempo contemplaram a escuridão agora começavam a se abrir. Ele olhava para alguns lugares e via formas, contornos, aparências. Quando mudava a direção do olhar ficava cego. Mas não mais. Ele passara a ver. Não claramente, mas cruamente.
Descobriu o que o impedia de ver antes: a paixão e a proximidade.
Quando se está muito perto e apaixonado a visão perde sua agudeza. A paixão é como um veneno poderoso injetado diretamente nas meninas dos olhos para tirar-lhes a dança, para matar sua capacidade de ver.
Quando a distância chega perto e a paixão começa a declinar o espírito dos olhos volta. A música começa a soar novamente e a dança recomeça. 

As meninas de seus olhos estavam dançando outra vez. A negritude que via agora ganhava cor. Formas se formavam. Podia ver. Uma visão libertadora, mas que às vezes fazia com que preferisse ser cego.